quinta-feira, 12 de junho de 2014

Sobre a psicanálise, a fantasia e as relações sociais

Para começar a refletir acerca da questão proposta devemos pensar no que consiste a metapsicologia. De acordo com Anthony Elliot[1] a psicologia do ego envolve a problematização da configuração do Eu e do questionamento da noção de subjetividade, fazendo associações entre desejo e razão, o Eu e a emoção; tudo isso circunscrito no universo das relações culturais. A metapsicologia dedica-se a estudar um campo da psicanalise até então não explorado pela psicologia empírica de cunho positivista, embasada em ideais iluministas cartesianos, centradas naquilo que é fixo. Uma concepção supersocializada do Eu, onde o individuo é essencialmente racionalizado e assim, livre de conflitos. É nesse contexto que a metapsicologia desafia essas avaliações da construção do Eu e da identidade. A teoria psicanalítica revela que o Eu ou o Ego compõe apenas uma das dimensão da subjetividade, que por sua vez é construída de modo peculiar através de operações inconscientes ligada à instância do desejo. Um desejo que se engendra no campo do imaginário fantasioso, direcionado a outrem. Mostrando desse modo, que existe uma relação para além do consciente, chamado de subconsciente.
Não obstante, o eu oculto (subconsciente) repleto de fantasias, impulsos, desejos e paixões, configura também uma forma de organização do Eu, expressado sutilmente nas relações sociais da vida cotidiana do individuo. As ideias que configuramos de nós mesmos e dos outros destacam dimensões afetivas da subjetividade humana. Tem-se assim uma divisão entre duas estruturas: dimensões do consciente e inconsciente. Em suma, acredita-se que a construção do eu envolve um cenário social, onde as imagens construídas são capazes de trazerem consigo amplas implicações em termos de critica social, politica e cultural; assim como existe também o pensamento que acredita que a formação da identidade do eu é baseada em ficções, na imaginação fantasiosa.
 Dentre os estudos psicanalíticos, destaca-se o pensamento de Sigmund Freud[2], que desenvolve a psicanalise como campo de investigação, método de pesquisa e prática psicoterapêutica, que se estabelece a partir da fala. A narrativa, método capaz de desenvolver a analise é de extrema importância, então, para construção dos fatos psicanalíticos. É através dela que se alcança uma ressignificação das neuroses, saindo da alienação de si mesmo; “a cura pela fala”. Construindo, de acordo com Paul Ricouer, a experiência analítica.
A identidade se encontra em construção contínua, por via das relações sociais estruturadas e regidas pela fantasia, que tem por elemento contingencial a socialização e a constituição de afetos. Principalmente se se tratar de um relacionamento de cunho sexual. O emocional faz reconhecer que, por exemplo, um fim de relacionamento deste tipo pode desencadear sentimentos de perda, de sofrimento e magoa. Justifica-se assim “a significação da conversa corriqueira: o reconhecimento implícito de que a identidade é plasmada por amplas influencias emocionais[3]. Construindo dessa maneira uma psicodinâmica emocional no processo de construção do Eu e dos relacionamentos sociais. De acordo com Freud, dentro desse processo de alteridade inconsciente, situa-se as instancias da psique, dividas no id, ego e super-ego. O id, seria uma cadeia de pulsões e significados, que são jogados no consciente e no subconsciente, desconhecendo a logica, a realidade, negação ou contradição. O ego, se forma com bases em um tipo de consciência moral, pré-estipulada em uma sociedade. O super-ego tem suas bases no id, funcionando mais ou menos como uma idealização do Eu. O contato com o outro, portanto, influi na construção do Eu, assim como o impulso corporal libidinal, ligada à sexualidade.
O conceito de representação ou fantasia esta no cerne da discussão que gira em torno da formação do Eu. O “principio de realidade” impõe limitações aos impulsos voltados para o prazer do inconsciente. Essa oposição entre prazer e realidade é de extrema importância para a formação da vida do ser humano; ligados ao mecanismo de repressão. A formação do ego racional depende desse contato com a realidade.
De acordo com Paul Ricouer[4], no seu texto “A questão da prova em psicanálise”, descreve que o desejo se insere na dimensão subjetiva da significação, através do objeto desejado, do outro. Envolve então a questão das demandas, dos objetos perdidos e substituídos, concluindo que a mediação do outro é constitutiva do desejo – movido pela falta. Percorrendo sobre a separação da realidade psíquica da realidade material, Ricouer diz que a realidade psíquica parte da ordem do imaginário, da fantasia, e a realidade material seria estabelecida a partir da vida social. Faz-se necessário tal distinção porque, irá trabalhar em torno dos fatos psicanalíticos, que se encontram na ordem da realidade psíquica, numa relação dialética entre resistência e coerência.  Todo individuo tem de negociar a rendição do principio de prazer ao principio da realidade. Muitos desejos não podem ou não devem ser postos em ação em detrimento das convergências e imposições sociais.
            Sendo assim, de acordo com Freud, tem-se como resposta o mecanismo de repressão. Essa por sua vez, é tida por Freud como um meio termo entre a fuga e a condenação que perpassa pelo que denomina de impulsos instintuais. Um exemplo dado: a fome. Quando se tem fome e não se come nada, permanece-se a sensação de insatisfeito. O estimulo instintual de sentir fome se torna imperativo mantendo veemente a tensão de necessidade, não podendo ser abrandado senão por um ato de satisfação. Nesses casos, onde existe tensão em torno dos impulsos instintuais, o mecanismo de repressão é pouco observado, devido a essa necessidade de satisfação. No entanto, através da experiência clinica, percebe-se que pode haver prazer em usar a repressão no lugar da satisfação do impulso instintual. Para que isso aconteça, é necessário que o motivo do desprazer seja maior que o prazer da satisfação.
            Freud analisa o procedimento da repressão nas psiconeuroses, dividindo-a em duas partes. A primeira consiste na repressão primordial. Essa fase da repressão que consiste no fato de ser negado à representante psíquica do instinto o acesso ao inconsciente, produzindo certa fixação. Essa intensidade ilusória do instinto é produto de uma desinibida expansão da fantasia e de sua forçada repressão. Assim, a representante psíquica persiste sem alteração e o instinto acaba por permanecer ligado a ela. Em seguida tem-se a segunda fase: a repressão propriamente dita, que afeta os “derivados psíquicos” da representação psíquica reprimida. Constituindo-se, portanto, em uma pós-repressão. O instinto vai sendo suprimido de modo a se transformar em angustia ou afeto; isso vai depender da quantidade de energia psíquica que o individuo ira gastar e direcionar. Caso a repressão não impeça a sensação de angustia e desprazer, significa que houve uma falha ou fracasso. Esse fracasso origina o retorno do recalcado, configurando as neuroses. As situações neuróticas envolvem a questão da verdade e da realidade psíquica, onde os fantasmas (o recalcado) aparecem em sequencias de repetições num cenário estruturado. Os mecanismos de repressão são assumidos na necessidade de conciliação entre a realidade psíquica e a realidade material. Por via não só desses conceitos desenrolados aqui, mas do conjunto teórico como um todo ao qual não abordei por completo, e da experiência psicanalítica vai desenhando o envolvimento entre a fantasia e as relações sociais.



[1] Elliot, Anthony. “A construção do eu. Divergências na teoria psicanalítica”. In: Teoria psicanalítica. Introdução. Trad. São Paulo: Loyola, 1996, p. 15-53.
[2] Freud, Sigmund. “Ensaios de metapsicologia”. In: Obras completas. Trad. São Paulo: Cia. das Letras, v. 12 (1914-1916), 2010, p. 51-194.
[3] Freud, Sigmund. “Ensaios de metapsicologia”. In: Obras completas. Trad. São Paulo: Cia. das Letras, v. 12 (1914-1916), 2010, p.18
[4] Ricoeur, Paul. “A questão da prova em psicanálise”. In: Escritos e conferências I. Em torno da psicanálise. Trad. São Paulo: Loyola, 2010, p. 17-55.